A TRAÇA é um projeto de recolha, estudo e exposição de filmes de família iniciado em 2015 pelo Arquivo Municipal de Lisboa – Videoteca. Desde o seu início assenta sobre dois pilares: o território, tratado a partir da história da sua habitação, e o arquivo, cujos limites procura expandir. Mais ou menos de dois em dois anos este projeto materializa-se numa Mostra, espaço de exposição não apenas dos filmes que estão a ser recolhidos em permanência desde o início do projeto, mas também do trabalho de arrumação, articulação e montagem – do trabalho do arquivo, portanto – feito com e sobre eles.
É a 3ª edição desta Mostra que em 2020 se materializa na forma deste sítio-mapa.
Parece contraditório, mas este sítio é mesmo um mapa: ao mesmo tempo um espaço por onde se pode circular e assistir a pequenos acontecimentos – projeções, comentários a projeções, conversas – e instrumento de orientação, guia de percursos de facto, para serem feitos no chão.
A 3ª edição da TRAÇA só ficará completa quando cada projeção, cada imagem, cada voz deste sítio for vista ou ouvida no lugar e na paisagem para que remete este mapa.
Esse chão onde esta TRAÇA acontece estende-se entre as freguesias de Marvila e Alvalade. Dois territórios que, apesar de contíguos, estão em parte desenhados para se esquecerem um do outro. Separados por fronteiras físicas – o morro do Parque da Belavista (que tem os seus portões abertos só do lado de cima e portanto não pode ser atravessado) – ou programáticas – Alvalade, “cidade-satélite”, desenhada e programada para ser auto-suficiente e estar fechada sobre si própria -, os dois territórios estão ainda assim ligados pelos percursos históricos ou quotidianos dos seus moradores. Sobretudo dos moradores de Marvila que, ou porque saíram dos bairros de construção informal que até aos anos 90 existiram nos terrenos de Alvalade (como os bairros da Quinta da Holandesa ou da Quinta do Narigão) para ocupar ou serem realojados nos bairros recentes do Vale de Chelas, ou porque continuam a ter de ir às compras ao Mercado de Alvalade, percorreram e continuam a percorrer os caminhos mais ou menos informais que continuam a ligar (de facto ou na memória) as duas freguesias – e isto mesmo se muitos destes caminhos não aparecem nos mapas oficiais.
Serão as vozes – ouvidas ou transcritas – das pessoas que habitam os bairros que teriam recebido a TRAÇA que vão permitir recuperar esses percursos (reais e imaginários) na base desta edição da TRAÇA. Ao longo da semana de 19 a 25 de Outubro de 2020 será lançado um percurso por dia neste sítio-mapa. Percursos que no final vão desenhar uma rede de circulação em volta de dois pontos permanentes que indicam o sítio (de facto, no chão) onde estará montada a exposição MURAL, resultado da residência que a curadora Maria do Mar Fazenda, a convite da TRAÇA, fez neste arquivo de filmes de família.
Se tem sido ponto assente da TRAÇA abrir o arquivo aos trabalhos da arte (cinema no primeiro ano, performance no segundo), o centro dessa abertura tem sido colocado no trabalho do artista. Este ano, contudo, esse encontro – entre arte e arquivo (e arquivo de filmes de família em particular) e o território da cidade, depois – faz-se a partir do eixo da curadoria. A partir desse eixo não só resulta uma re-arrumação do arquivo, como é habitual nestas residências, mas as próprias fundações do projeto expositivo que é a TRAÇA são inevitavelmente também jogadas no trabalho que resulta desta residência de curadoria: o espaço – desde logo porque esta Mostra nunca tem centro ou local fixo, o que torna necessário definir o próprio espaço expositivo - e implica também trabalhar de modo direto com ligações e afinidades entre os filmes, primeiro, entre os filmes, os artistas, e o espaço expositivo, no final – questões aliás que são exploradas no limite, no desenho deste sítio em linha.
André Guedes, Carla Filipe, Fernanda Fragateiro, Filipe André Alves, Ramiro Guerreiro são os artistas que intervêm no MURAL ( e participam também em diversas ações deste sítio).
Da residência da curadora neste arquivo resulta a exposição MURAL mas também MONTAGEM, compilação de fragmentos de filmes de família que organizou em quatro blocos e funciona como uma espécie de texto curatorial – que será comentada pela curadora (e por alguns dos artistas com quem trabalhou) em vários pontos deste mapa.
Será a partir de MONTAGEM, o resultado mais direto da interação e rearrumação do arquivo, que o arquivo de filmes de família será exposto neste programa: todos os filmes vistos ao longo desta semana dão o contexto e permitem conhecer as colecções das quais a Maria do Mar retirou excertos (e assim permitem perceber o trabalho que fez com eles). E algumas destas coleções voltamos a abrir e a dar a outros - e poderíamos ficar indefinidamente nesse jogo de abrir e voltar a abrir o mesmo arquivo e ficar a ver o que acontece: a projeção de algumas coleções será aqui acompanhada por alguns dos artistas que foram descobrindo este arquivo ao longo das várias edições da TRAÇA – e são já a sua família – cineastas e artistas da performance que, convidados a comentarem as imagens, acabam por expandi-las muito para lá das fronteiras deste programa: Jorge Silva Melo, Margarida Cardoso, Raquel André, Sofia Dinger, Sofia Dias & Vítor Roriz são os artistas que expandem este arquivo e Catarina Alves Costa regressa à TRAÇA para mostrar Swagatam (que é também uma espécie de filme de família) no local (virtual) onde foi feito.
O arquivo aparecerá aqui a ser remexido por numerosas mãos, que arrumam o que é desarrumado logo a seguir por outros que descobrem ligações novas entre as mesmas imagens – talvez os movimentos que melhor descrevem os solavancos da memória sejam os ecos, regressos, reverberações e este sítio-mapa está cheio deles.
Por fim, uma nota sobre a palavra projeção, usada em cima, porque é aqui uma palavra importante. Primeiro, porque permite sublinhar que a paisagem constituída a partir deste sítio-mapa será, de diversas maneiras, uma paisagem projetada. Isto, porque se vão projetar paisagens passadas na paisagem atual de Marvila e Alvalade, a partir das vozes daqueles que aí vivem. Vão também projetar-se as paisagens de Marvila em Alvalade, o que vai fazer descobrir praças sem nome, baldios e traseiras nesse bairro racional desenhado inteiro no papel. E, finalmente, vão projetar-se os filmes feitos pelos moradores da cidade num território onde não foram feitos: Alvalade é o bairro de onde nos chegam mais filmes, mas Marvila está totalmente ausente neste arquivo de filmes de família (e esse campo-cego é uma das razões que traz a TRAÇA para aqui, para destabilizar e questionar o centro, também no que diz respeito à produção de imagens). Serão assim projetadas paisagens a partir do encontro entre filmes e um território onde não foram feitos.
Projeção é também importante para descrever a necessidade de re-mediar (literalmente) este programa que não pode acontecer de facto, como é habitual, nos locais (de habitação privada ou informal) que habitualmente recebem cada encontro (entre moradores, depositantes e realizadores, artistas e curadores) que a TRAÇA é. Não quisemos impor a ordem em espaços de intimidade, que são aqueles por onde circula a TRAÇA habitualmente, e por isso organizamos este sítio-mapa como uma espécie de memória do que teria sido a TRAÇA com o desejo de que ele seja usado para percorrer os espaços e refazer os encontros que teriam acontecido.
Cada um desses encontros é aqui também ele uma projeção (no presente, de um passado que não aconteceu). Encontros estilhaçados e refeitos – como as mesas de trabalho transformadas em cadavre exquis (no dia 19) – ou encontros literalmente mediados – como as alunas e professora da escola de artes Ar.Co (vizinha de Xabregas), Ana Almeida, Ana Vala e Maria Mire, convidadas a descrever (que é mediar mas também percorrer) as viagens de autocarro que teríamos feitos juntos – ou encontros decalcados das sobreposições de vozes, imagens e textos que se abrem em cada local para descobrir no chão.
É um mapa para ser usado.
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Alexandra Martins e Maria Silvandira Martins, Ana Almeida, Ana Vala, André Guedes, Avelino Ferreira, Bruno Caracol, Carla Filipe, Catarina Alves Costa, Fernanda Fragateiro, Filipe André Alves, Francesca Berardi, Francisca Lima, Jorge Silva Melo, José Diogo Gonçalves, Margarida Cardoso, Maria Mire, Maria Ramalho, Ramiro Guerreiro, Raquel André, Rui Mendes, Sofia Dias & Vítor Roriz, Sofia Dinger, Teresa Castro, Teresa Palma Rodrigues, Teresa Valsassina Heitor, Vasco Santos.
Coleções de Filmes de Família de Álvaro e António Lourenço, António Cunha, Fernando Rafael Ferro, Inês Goes, José Diogo Gonçalves, Luisa Ramos Crick, Manuel Maria Laginha, Maria da Assunção, Pedro Salgado de Oliveira, Pedro Torres
Nara Miranda, Sara Rodrigues (Casa dos Direitos Sociais – Espaço Flamenga), Alexandra Cruz, Ana Pinto, Miguel Simões (Associação de Moradores do Condado), Elsa Vicente (Centro Social Paroquial São Maximiliano Kolbe), Constantino Rodrigues (Associação Socio-cultural do Bairro Marquês de Abrantes), Marco Pereira e direção da Associação de Moradores do Bairro Marquês de Abrantes, Esmeralda Saragoça (Centro Comunitário do Bairro da Flamenga - SCML), Maria João Teixeira (Centro de Desenvolvimento Comunitário do Bairro dos Lóios - SCML), Sara Vaz (ATM – Associação Tempo de Mudar), José Moreira (Associação de Moradores do Bairro dos Alfinetes e Salgadas), Luís Reis (Grupo Comunitário 4 Crescente), Manuel Lacerda (Associação de Moradores do Bairro das Amendoeiras), Marco Silva (Sociedade Musical 3 d’Agosto de 1885), Rute Oliveira (Junta de Freguesia de Alvalade), Elisabete Santa-Bárbara (Biblioteca dos Coruchéus), Biblioteca de Marvila, Alexandra Areia, António Brito Guterres, Clara Barbacini (Arquivo dos Diários), Francisco Moniz Pereira, Inês C. Monteiro, Joana Mourão, João Martins (ICS), Patrícia Pimentel, Ricardo Julião e a todos os moradores que nos receberam e guiaram pelos seus bairros.