Os participantes desta mesa de trabalho foram convidados a partilhar um esboço ou início de reflexão para a discussão que teria acontecido no LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil), Laboratório onde, em estreita colaboração com o GTH (Gabinete Técnico da Habitação) da CML, se desenvolveram, em parte, os trabalhos de desenho e projeto dos bairros de Chelas.
Os participantes foram convidados a seguir os procedimentos de um jogo levemente inspirado nos cadavre exquis (ou cadáveres esquisitos) dos surrealistas.
Mapa e Habitação (ou do desenho urbano como modo de programar)
O objetivo é aqui pensar sobre a tensão entre desenho urbano e arquitectónico e a habitação. Duas imagens, para começar:
Uma é o mapa com as localizações dos filmes de família que estão a ser recolhidos através do projeto TRAÇA (ou seja os locais onde as pessoas tendem a filmar, em Lisboa):
A outra é um fragmento do “Atlas do gesto” (em curso), compilação de um dos gestos mais frequentes nestes filmes, o de ajeitar ou disciplinar os corpos para o plano da câmara (plano que, no cinema, é, entre outras coisas, uma forma de prever).
“Open Space Is The City Most Important Resource”
“O espaço livre é o recurso mais importante da cidade”
“There have always benn wastelands. History condemns them as a loss of man’s power over nature, but are they not the blank pages we need?"
“Sempre existiram baldios. A história condena-os como uma perda do poder do homem sobre a natureza, mas não serão eles as páginas em branco de que precisamos?”
"2. Descampados/Áreas de impunidad
La disolución de la oposición natural-artificial que observamos a todas las escalas, conlleva un programa de trabajo que no es otro que el de redescribir, a través de la arquitectura, la posición del hombre contemporáneo frente al mundo. Las “áreas de impunidad” son precisamente lugaresen los que se produce de forma excepcional esa condición ambigua, cuya definición como espacios públicos o espacios naturales es imprecisa. Lugares antes negativos, a los que la mirada de los nuevos sujetos sociales y sus prácticas han dado una nueva urbanidad. Mirad los descampados de nuestras periferias, cómo en esos terrenos baldíos se han construido casi todas las formas de socialización emergentes aún, o precisamente porque, son territorios desregulados. Uno siente la tentación de preguntarse si en ellos no habrá un modelo metafórico, un casi-modelo, si cabría pensar en su complemento, el “desedificado”, pues la palabra “descampado” es, en sí misma, fascinante, un campo que ha perdido sus atributos al acercársele la ciudad, esterilizándolo antes de ocuparlo, pero también dándole un papel trascendental en su nuevo contexto. Nos preguntamos si podría construirse una arquitectura así."
"2. Terrenos baldios/Áreas de impunidade
A dissolução da oposição natural-artificial que observamos em todas as escalas, envolve um programa de trabalho que nada mais é do que redescrever, através da arquitetura, a posição do homem contemporâneo diante do mundo. As “áreas de impunidade” são precisamente os lugares em que essa condição ambígua ocorre excecionalmente, cuja definição como espaços públicos ou espaços naturais é imprecisa. Lugares antes negativos, aos quais o olhar dos novos sujeitos sociais e suas práticas deram uma nova urbanidade. Vejam-se os descampados das nossas periferias, como nesses terrenos baldios foram construídas quase todas as formas emergentes de socialização, ainda que, ou precisamente porque são territórios desregulados.
Ficamos com a tentação de perguntar se ali não existirá um modelo metafórico, um quase modelo, se pensarmos no seu complemento, o “não construído”, já que a expressão “terreno baldio” é em si fascinante, um campo que perdeu os seus atributos à medida que a cidade se aproximava, esterilizando-o antes de ocupá-lo, mas também atribuindo-lhe um papel transcendental no seu novo contexto. Perguntamo-nos se seria possível construir uma arquitectura assim."
Na cidade de Lisboa, Alvalade, Olivais e Chelas resultaram de planos de expansão, pensados, projetados e executados pelo município, a partir da década de 1940.
Alvalade foi o balão de ensaio. Em causa estava a procura de uma linguagem urbana para uma zona da cidade que se queria “moderna” e assente na intenção de criar um tecido socialmente diversificado e plurifuncional, semelhante à da cidade existente. Aos conceitos tradicionais e conservadores de projetar a cidade foram contrapostos os princípios orientadores do novo urbanismo racionalista, numa solução de compromisso, para integrar edifícios destinados a habitação social e a habitação de rendimento, apoiados em equipamentos - escola, mercado, centro cívico, pequena indústria.
Seguiu-se Olivais Norte em 1959 e Olivais Sul em 1962 já em rutura total com as práticas da urbanística formal então utilizada em Alvalade. Em Olivais Norte estão refletidas as soluções adotadas nas novas cidades satélites de Londres em que a tendência naturalista da 'cidade-jardim' (garden-city) dava lugar à conceção da 'cidade no parque' (city in the park) dispersa e com baixa densidade. Em Olivais Sul foram introduzidas algumas alterações resultantes da revisão dos conceitos subjacentes às cidades do pós-guerra, traduzidas na densificação das áreas residenciais através de novas formas, mais compactas, de agregação dos edifícios.
Muito embora os modelos aqui aplicados tenham permitido assegurar uma ligação eficaz da habitação com os serviços e equipamentos imediatos, não resolveram a relação entre a função residencial e outros equipamentos produtivos, pelo que os Olivais, durante muito tempo, não conseguiram ultrapassar o estatuto de zona 'dormitório'.
Chelas correspondeu à quarta e última fase desta operação urbanística de grande escala, numa área com cerca de 737 ha, equivalente a aproximadamente um décimo da área total da cidade. Foi imaginada, programada e construída segundo uma visão humanista de justiça social e de compromisso público associada à ideia de agir na cidade em nome dos interesses coletivos. Foi uma resposta dada em linha com a postura ética que caracterizou o movimento Moderno e em particular com as vozes e inquietações levantadas nos últimos CIAMS em defesa da qualidade de vida urbana, da necessidade de promover uma experiência urbana mais "intensa", do desejo de fomentar o sentido de urbanidade e de vida coletiva e de criar ambientes mais socialmente responsáveis.
Se Alvalade se tornou um caso de sucesso, o mesmo não se poderá dizer de Olivais e Chelas. Mostrar que os objetivos foram alcançados pode ser discutível, mas as ideias que lhe estão subjacentes continuam a ter pertinência no discurso contemporâneo. Certo é que a vitalidade que estes territórios urbanos têm evidenciado e os ajustamentos e completamentos que têm vindo a ser executados localmente e de forma participada aproximam-no do conceito (humanista) original.
Foram, a seu tempo, novos territórios que ocuparam zonas periféricas da cidade, desfasadas dos centros de vida social e urbana da altura. Aos seus habitantes foi pedida capacidade de adaptação. Pioneiros de um “mundo novo” passaram por processos de aprendizagem, mais ou menos longos, mais ou menos traumáticos. Por necessidade tiveram que se reinventar e criar uma segunda pele que lhes permitiu produzir e reproduzir as suas vidas e construir as rotinas que necessitavam para viver plenamente. A escassez, ou melhor, a inexistência de registos – filmes de família – produzidos nestes bairros não pode ser desligada deste complexo processo de apropriação e apenas explicada pela condição social e económica das populações que os habitaram e pela falta de acesso a tecnologia.
Porque os filmes de família são intervenções que levam os seus intervenientes a sair da sua bolha e a tornarem-se personagens ativos de uma "história". Porque permitem vivenciar e perceber o seu bairro com uma nova narrativa, que lhes é próxima e da qual são parte integrante, criando novas experiências e convergindo para um discurso em comum, o da reinvenção do espaço que habitam. Porque o “bairro” para ser reconhecido como o lugar de onde se vai e para onde se volta, onde se constroem rotinas e hábitos, implica permanência e pertença. E para haver permanência e pertença é preciso criar laços e cumplicidades. Os limites deste habitar começam quando diante do bairro o seu morador diz “moro aqui”.
Porque quando um ambiente é percebido, concebido e apropriado na condição de extensão da casa, carrega em si uma dimensão simbólica associada à ideia de posse.
Como refere Martin Heidegger a única possibilidade que o homem tem para ser e estar no mundo é habitando-o: “The way in which you are and I am, the manner in which we humans are on the earth, is the dwelling. To be a human being means to be on the earth as a mortal. It means to dwell”.
Basic writings. Building Dwelling Thinking. Martin Heidegger, Harper and Row N.Y., p. 325.
Escolhi duas páginas de um livro de Jan Gehl que penso ser bastante conhecido, mas que eu só descobri no ano passado, quando morava em Lisboa. Fui atraída pelo título e pela capa, por isso comprei-o.
O que mais gosto na sua abordagem é a importância dada à observação, a taxonomia dos movimentos diários que ele cria, a necessidade de os classificar a fim de compreender como tornar o espaço entre edifícios mais adequado ao encontro das pessoas e à experiência da cidade.
Relê-lo agora fez-me pensar nas palavras de uma senhora que vive desde os anos oitenta no Poço do Bispo e que entrevistei o ano passado, juntamente com o seu filho. Estava a enfrentar o medo de ser despejada e enumerou todas as razões pelas quais já não podia amar a casa em que vivia. Muitas delas tinham a ver com o facto de não haver mais nada para ela fazer na rua.
Mas por outro lado, o espaço público entre os edifícios também parecia o último desesperado recurso em caso de despejo.
CIDADE PÚBLICA, CADASTRO, PERMEABILIDADE – PARA UMA NOVA ECOLOGIA DOS LUGARES
A matriz da cidade é pública.
A figura do cadastro urbano carece de enorme atenção como “matéria pública”.
Um dos temas mais prementes na cidade construída é a noção e o reconhecimento do espaço entre. O espaço que permite a percepção topográfica, morfológica e tipológica.
A cidade que se consolida, vai tendencialmente tapando e ocupando os espaços não planeados. A grande maioria são espaços desinvestidos e em decadência.
Um renovado mapa, espaços para uma nova ecologia dos lugares, onde possa caber o imprevisível e a ruína, sistemas abertos entre o natural e o artificial. Entre pré-existências e troços de vegetação, são muitas vezes espaços mágicos, transformados em lugares essenciais do conjunto.
Olivais e Chelas são provavelmente os núcleos mais qualificados da cidade de Lisboa.
O Vale de Chelas como epicentro desta ideia-acção.
A permeabilidade e a infiltração como tema e estratégia.
A natureza das ligações (ausência) como o tema vital de discussão para uma cidade para todos.
TAKE 2: PENSAR AS CIDADES E OS SEUS CONFLITOS
As cidades estão a sofrer modificações profundas, em termos da sua própria natureza, das suas qualidades tradicionais e dos seus reflexos no quotidiano, caminhando para aquilo que Manuel Castells designou de “cidade dual”: o espaço do mal-estar resultado de desigualdades sociais e territoriais.
Assumindo um sinónimo de destruição da cultura da cidade, este mal-estar remete para a negação do conceito grego de pólis: o lugar de diversidade, de encontro, de contacto e de relação entre cidadãos; uma entidade formada e formadora de convivência, atractora e difusora de valores e de significados distintos.
É este complexo desiderato, em situação de risco eminente, que vem acompanhando a história da cidade, tolerando diversas correntes de pensamento, resistindo a guerras e calamidades várias, que residem as inquietações do momento sobre o futuro da cidade.
Esta crise da urbanidade 1, conceito de difícil enunciação, mas essencial para a abordagem do quadro urbano contemporâneo, tem sido analisado sob várias perspetivas, conforme seja pensada como rutura, mais ou menos radical das condições fundadoras do modelo de cidade moderna.
Sem pôr em causa os fundamentos teóricos que suportam o conceito de pós-modernidade, há que pensar em termos de uma modernidade em crise: um tempo de transição social, com o consequente aumento dos riscos e das incertezas, gerador de contextos urbanos de grande complexidade.
1 Na ausência de uma definição explícita de urbanidade proponho entendê-la como vida urbana coletiva i.e., a relação dinâmica que se estabelece entre as várias dimensões da vida quotidiana e o espaço adequado à sua realização. De acordo com esta interpretação, a urbanidade é suportada pela condição instrumental - infra-estrutural, funcional, e simbólica - do espaço público e traduz-se em vitalidade urbana.