Os participantes desta mesa de trabalho foram convidados a partilhar um esboço ou início de reflexão para a discussão que teria acontecido no Hospital Júlio de Matos nesta edição. Foram convidados a seguir os procedimentos de um jogo levemente inspirado nos cadavre exquis (ou cadáveres esquisitos) dos surrealistas.
TRAUMA E TERRITÓRIO (ou da deslocação como modo de esquecer)
Fotografias de Inês Sapeta Dias
Existiram, nalgumas zonas de Alvalade e até aos anos 80 e 90, vários bairros de auto-construção ou construção provisória cujos habitantes vivem hoje nos bairros de Marvila. Em cima quatro fotografias tiradas no que foi a Quinta do Narigão cujos habitantes vivem actualmente, em larga maioria, entre o Bairro dos Lóios e o Bairro das Amendoeiras. O terreno é hoje um baldio desocupado nas traseiras da Av. Dom Rodrigo da Cunha, onde ainda se vêem alguns restos de tijolos e de paredes, ruínas desse antigo bairro entretanto destruído.
Ia Freud para Ragusa, juntamente com um amigo, para visitar uma cidade da Herzegovina, quando se quis lembrar do pintor dos frescos da capela do Duomo em Orvieto.
Freud amava as cidades e tinha por Roma e pela Itália uma neurótica paixão.
Era Agosto de 1898 e Freud teve um lapso de memória, o esquecimento do nome do pintor Signorelli, que ficou famoso como um paradigma da formação do inconsciente.
Freud, herdeiro de Nietzsche, criador fundamental da modernidade, e que aqui convoco, tem como seu pressuposto central a crença no papel organizador da memória, sendo esta vista como uma série de inscrições e traços mnésicos.
Depois dessa viagem, Freud publica «O mecanismo psíquico do esquecimento», especulando que aquilo que deixamos cair no esquecimento, nesse rio Lete, afluente de Hades, é sempre efeito de uma repressão, de um recalcamento.
Freud não cria, propriamente, uma teoria da memória, mas vai fazer avanços e tornar mais complexa a sua investigação até à década de 30 do século passado.
De forma simplificada, poderíamos dizer que, para ele, o aparelho psíquico é um aparelho de memória e linguagem.
E a memória é fragmentária, descontínua. A memória não pode armazenar tudo.
O psicanalista seria, assim, um caçador de traços.
Existe uma aliança entre memória e esquecimento. E o esquecimento configura-se ainda maior do que a lembrança.
Diz-se: O homem é um sonhador definitivo. O homem sonha e o sonho devolve-nos, por momentos, ao passado indestrutível, tornando-o presente.
Mas o sonho não pode ser desligado de um ritmo biológico próprio, algo que ocorre numa fase específica do sono, o designado sono paradoxal. O sonho tem, pois, uma ritmicidade determinante para a iniciação da actividade onírica. Este ritmo é universal e não se limita apenas ao ser humano, ele estende-se aos mamíferos e não só. O que nos originaliza, porém, é o recalcamento do sonho. O homem é o ser do esquecimento.
Chelas–Marvila. Memória de um muro.
Ao tentar explicar recentemente o local onde se situava um longo muro numa rua que conheço desde infância, a Azinhaga da Salgada, dei por mim face ao “problema” da forma mais adequada para designar o bairro onde ela se situa — se em Chelas, ou se em Marvila.
Gostava de introduzir primeiro a azinhaga e o seu muro. Este terá resultado do alargamento deste arruamento – e portanto transformação da azinhaga original – ainda no final do século XIX segundo um projeto camarário, presumo por motivos funcionais e rodoviários. O nome desta rua-azinhaga, como era costume acontecer na nomeação de azinhagas, foi recolhido na quinta mais próxima, a Quinta da Salgada, situada um pouco mais acima, no Alto das Conchas (ou Alto de Chelas). Foi a sua proprietária Ana Joaquina Salgado, natural do Recife (Brasil) e filha de pais portugueses, que lhe deu o nome já no séc. XVIII. Curioso sabê-lo agora; perceber como afinal a designação da rua não provém (afinal) de um habitante do bairro ou de uma actividade ali praticada (salga), mas de alguém que mantinha, mesmo que de modo implícito sobre que vivia nas suas imediações, uma posição de privilégio, social e económico.
A azinhaga permaneceu quase intacta até à actualidade, resistindo à evolução urbana fragmentada, desconexa e segregacionista da zona oriental da cidade no decorrer do séc. XX. Ainda lá está a correnteza de casas e o longo e alto muro; é verdade, como entretanto cresci, parece-me menos alto. Mas hoje, na minha imaginação, como no período em que visitei regularmente a azinhaga, o muro era uma fábrica. Teria até uma grande chaminé, quando na realidade nunca a teve. Naturalmente era apenas um muro. Uma separação entre a estrada e os terrenos agrícolas que existiam por detrás dele e que, como muitas outras quintas de Chelas, abasteciam a cidade. Mais tarde, como se pode ver na fotografia, esse terreno foi, entre outras coisas, um cais de contentores. No entanto para mim esta rua representa, como alguns outros atalhos silenciosos da zona oriental, o período da revolução industrial na cidade de Lisboa, que se desenvolveu exponencialmente nesta periferia, “fora” da cidade, em paralelo ao rio e ao longo da linha de caminho de ferro. A verdade é que é ainda nesta rua, e em particular junto a este muro, onde imagino a recriação de uma entristecida rua de Londres ao cair da noite no contundente romance de Dickens Hard Times: for These Times, onde o autor relata a discrepância das vidas do operariado fabril e da burguesia industrial.
Quando passamos hoje na azinhaga não deixa de ser irónico pensar que as memórias de um palácio com ermida e jardins, como o da Quinta da Salgada, se tenham dissipado e a propriedade esteja em absoluta ruína. Inversamente, os terrenos agrícolas por detrás do muro (que não é uma fábrica) continuam a ser usados de modo utilitário e informal pelos moradores. Se a Azinhaga da Salgada é actualmente um anacronismo por entre o painel de retalhos em que se transformou esta área da cidade, não deixa porém de revelar uma pertinência sobre formas de uso do espaço, modelos de habitar, convivência e vizinhança que a cidade logo ali ao lado, feita pelos tecnocratas, não conseguiu obviamente articular.
Mas queria voltar à denominação do bairro. Marvila ou Chelas? e o enraizamento (ou pertença) como definição (identidade) socio-geográfica de uma comunidade...
Azinhagas
Começo este relato pelo fim. O fim é aqui a Rua da Academia das Ciências, onde se encontra o Museu Geológico. Aí se encontra o crânio fossilizado do “crocodilo de Chelas”, encontrado num areeiro da quinta da Farinheira em 1941. O crocodilo viveu há doze milhões de anos, durante o período miocénico. Nessa altura, “Lisboa” era uma floresta tropical húmida e, junto ao que é hoje o estuário do Tejo, viviam grandes crocodilos. Somos vizinhos (moro no Bairro Alto), mas ainda não nos conhecíamos.
Na entrada do Museu, há uma bonita carta geológica da cidade, onde o vale de Chelas se encontra coberto com os tons ocres que evocam as areias feldspáticas finas onde esteve enterrado o crocodilo, mas que associo também à paleta amarelada das suas encostas de hoje. Leio num cartel que “a maior parte dos lisboetas não faz ideia das transformações por que passou a região de Lisboa nestes últimos 100 milhões de anos”. Confirmo, enquanto penso numa cidade vulcânica a cuspir lava até Mafra. Na verdade, julgo que a maior parte dos lisboetas não faz ideia das transformações porque passou a cidade nos últimos 100 anos. E que é até relativamente mais fácil imaginá-la coberta por uma densa floresta tropical, envolta na bruma e sobrevoada por pterodáctilos, do que como a manta de retalhos feitos de quintas, hortas e cursos de água que ainda rodeava o centro da cidade em meados do século XX e que deu entretanto lugar aos prédios, descampados e vias rápidas de Benfica, Campolide, Carnide, Lumiar ou Marvila. Uma cidade de azinhagas, palavra à qual regressarei. Foi numa delas que o tio-avô da minha avó Emília (a minha família paterna é Lisboeta desde há várias gerações) partiu uma perna, atingido por uma carroça. Reza a história que morreu no hospital por não ter querido pagar um bilhete de comboio, e por gostar dos retiros da Estrada de Sacavém. Quem sabe não terá sido num trecho de Marvila que se magoou o senhor.
Regressei ao Museu Geológico, onde não ia desde criança, porque a Inês me falou do crocodilo de Chelas enquanto contornávamos parte daquilo que resta do Parque Aventura, no sítio da Quinta do Narigão. Encontrámo-nos em frente à Igreja de São João de Brito para ir explorar as traseiras do bairro de Alvalade. Geralmente, pensamos nas frentes urbanas como artérias estruturadoras. Mas não há frentes sem partes de trás. Sem vistas que, às vezes, não o chegam verdadeiramente a ser, porque se acredita que nada há de interessante a ver. Por exemplo: cresci em São Domingos de Benfica, um bairro que se desenvolveu de costas voltadas para o Monsanto (na realidade uma serra árida arborizada nos anos 1930 pela Mocidade portuguesa e os presos do Forte do Monsanto). Aqui, ao atravessarmos a Avenida Almirante Gago Coutinho, chegamos ao que Alvalade quis manter longe da vista (e do coração?): a miséria da ruralidade (penso na abertura dos Verdes Anos, a estreia de Paulo Rocha em 1963), que deu depois lugar a uma urbanização mal executada e à paisagem “que restou”. Estamos agora na freguesia de Marvila, topónimo que associo à frente ribeirinha oriental e não aos valados e encostas de Chelas. A tal Quinta do Narigão era um bairro clandestino onde se amontaram as famílias dos operários, vindas sobretudo das Beiras para construir as avenidas elegantes de Lisboa. A história é conhecida, tal como a da urbanização de Chelas, idealizada num plano datado de 1965 e cujo intuito era pôr um termo à precariedade e à insalubridade das barracas, transferindo-se os seus moradores para habitações sociais. Inaugurado em 2014, o Parque Aventura não durou muito (tal como o Clube de Golfe da Belavista, de que ainda restam redes penduradas nas cercas). Do Narigão, que depois de arrasado foi lixeira, não subsiste quase nada: a olho nu distinguem-se apenas alguns tijolos. Num socalco, uma figueira destoa dos choupos brancos e das inevitáveis canas. Quem sabe, talvez tenha dado figos a alguém, como a menina de aventalinho que, ao chegar a casa, vejo a sorrir numa fotografia de 1968.
Do Narigão aos Lóios é um salto, ainda que não dos mais convidativos a passeios a pé. Entramos no que foi outrora a tal cidade das azinhagas, dos atalhos, das canadas. Mas da fantasia saloia, aquela que me parece mais improvável do que os pântanos de crocodilos gigantes, apenas se recorda a toponímia. Só em Marvila, as azinhagas são quinze. Azinhaga da Bela Vista, das Teresinhas, da Maruja, da Quinta do Alfenim, da Salgada, da Troca, das Veigas, do Armador, do Baptista, do Ferrão, do Planeta, do Poço de Cortes, do Pombeiro, do Vale Fundão e dos Alfinetes. Todas têm nomes e, sobretudo, histórias por trás, numa freguesia (Marvila / Chelas) que continua, diz-se, a ter vias e lugares sem nome.
Do árabe alzanaqah, as azinhagas já não são necessariamente caminhos estreitos, ladeados de muros ou valados. Às vezes, são mesmo terrenos baldios. Leio nas Influências orientais da língua portuguesa que zanqah significa também “grande miséria, penúria”. Na Azinhaga das Teresinhas construiu-se a certa altura um portão para que o carreiro deixasse de ter serventia pública: tornava-se assim impossível caminhar até Alvalade. De vale dos caminhos – fossem eles azinhagas ou estradas largas (como a de Sacavém e a de Chelas), linhas de água, regos de couves e hortaliças, etc. –, Chelas passou a nó viário, como aqui na Bela Vista. Os arquitetos falariam na difícil mobilidade pedonal e na necessidade de humanizar o espaço público. Na rua Luís Cristino da Silva, o “Jardim das Colunas”, “espaço público” investido pelos moradores, encontra-se decorado por diversas esculturas, de Nossa Senhora de Fátima e de Santo António, mas também de golfinhos, cisnes, papagaios, flamingos cor de rosa, pinguins... Talvez o jardim seja sobre isso: tentar “humanizar” um espaço francamente inóspito, em particular pela sua quase total indiferença ao meio natural.
Nos últimos três meses, as minhas deambulações por Lisboa levaram-me frequentemente a jardins, hortas e baldios em freguesias limítrofes da cidade: Carnide, Campolide, Lumiar. A travessia que nos leva do Bairro dos Lóios até ao Parque Urbano do Vale de Chelas (a maior horta urbana de Portugal) tem algo de familiar. Ainda assim, a sensação de ter entrado num espaço-tempo distinto é bastante forte. No começo, incomoda-me. Talvez tenha a ver com a chegada por Alvalade: o contraste é violento, “alterizante”. Sentimo-lo no corpo, ao caminhar. Conheço o Pantera Cor-de-Rosa (a filha duma amiga que mora em Chelas frequenta uma creche que ali fica), mas debaixo do sol de chumbo deste começo de Setembro, algo me parece diferente. Faltam sombras, claro. Mas as folhas verdes das raras árvores frondosas que se erguem contra as fachadas cor-de-rosa, bastante degradadas, criam um contraste que me parece especialmente bonito. Em frente à Gruta do Leão, alguém plantou coentros num canteiro protegido por papel aderente. A terra está seca. Ao descermos para as hortas urbanas, sob os auspícios duma escavadora abandonada e dum candeeiro solitário, o silêncio é total. Penso no Narigão, na sua força inóspita e intensa de campo ruderal. Do latim ruderis, entulho. Designação dada às espécies vegetais que se desenvolvem em ambientes fortemente perturbados pela ação humana, como os aterros, baldios, bermas de estrada, vias férreas, etc. O caminho de cimento que nos conduz às frações perfeitamente organizadas das hortas está pontuado por algumas destas plantas, como as glórias-da-manhã.
Apesar de todos os riscos, digo-me que talvez haja lições a tirar do ruderal. Há quem diga que as plantas ruderais entretêm com os seres humanos uma relação de comensalismo. As plantas seriam os nossos comensais. Outras falam delas como sendo plantas colonizadoras, daninhas, ubiquistas, euritópicas. Enfim, plantas cosmopolitas que se adaptam a qualquer meio. Não deixa de ser fascinante constatar como crescem em solos danificados, instáveis, perturbados, sendo as suas sementes transportadas pelo vento ou pelas botas dos operários. Ao chegar ao parque de skate, já não vejo o vale de Chelas: vislumbro o coração vivo e ruderal da cidade. O seu ponto nevrálgico. O lugar onde um dia uma floresta tropical acolheu um crocodilo gigante que ainda está entre nós e onde, doze milhões de anos depois, brotam beldroegas por entre as frechas de betão.
Escavar e Recordar
A linguagem fez-nos perceber, de forma inconfundível, como a memória (Gedächtnis) não é um instrumento, mas um medium, para a exploração do passado. É o medium do que foi vivido (das Erlebte), do mesmo modo que a terra é o medium no qual estão soterradas as cidades antigas. Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de comportar-se como um homem que escava.
Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria (Sachverhalt) – espalhá-la, tal como se espalha terra, revolvê-la, tal como se revolve o reino a terra. Porque essas «matérias» mais não são do que estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que justificam o esforço do escavador. Falo das imagens que, arrancadas a todos os seus contextos anteriores, estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos sóbrios da nossa visão posterior — como torsos na galeria do coleccionador. E não há dúvida de que é útil nas escavações ser guiado por mapas do lugar. Mas igualmente imprescindível é saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tacteante no escuro reino da terra. E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado. Assim, as verdadeiras recordações (Erinnerungen) devem ter menos a forma de um relatório, e mais o da indicação exacta do lugar onde o investigador se apoderou delas. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica e rapsódica, deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos de onde provêm os achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes.
— Walter Benjamin, Imagens de Pensamento (segue-se a tradução de João Barrento, alterada por Maria Filomena Molder)
A melhor definição de arquivo é, quanto a mim, a de M. Foucault: «arquivo é o sistema que governa o aparecimento de enunciados». Sejam eles o antiquíssimo crocodilo de Chelas, uma azinhaga do século XIX, um palácio destruído, a memória de um muro e a subjectividade de quem percorre um meio irmanado com a subjectividade do próprio meio.
Se se pode afirmar que o arquivo amplia a memória colectiva, assim como o trabalho analítico amplia o campo da memória individual, esta memória não é hoje, como em Freud, um território estático, arqueológico, povoado apenas por objectos e pessoas.
G. Deleuze, ao proclamar a importância da actividade cartográfica das crianças, opõe a este modelo egípcio, onde a memória é monumental, um modelo índio, em que o inconsciente tem que ver com trajectos dinâmicos, construção de mapas, essenciais à actividade psíquica. A este propósito, afirma ele que «de um mapa a outro, não se trata da procura de uma origem, mas de uma avaliação de deslocamentos». Tal como nós, a cidade é como um ser psíquico, habitada por lugares de passagem e coisas do esquecimento, como nestes trajetos Narigão-Lóios, Marvila-Alvalade.
Encontra-se nesta geografia, real e imaginária, não uma travessia sonâmbula ou descontinuidade traumática, mas, antes, uma transitoriedade metafórica, um tempo intermédio, que nos aponta para um devir, para um lugar de onde se parte.
Chelas-Marvila. “Novas” questões sociais.
Para resolver o “problema” da denominação – se Chelas, ou se Marvila – é necessário considerar a história deste território da cidade em função dos planos urbanísticos para ele pensados na segunda metade do século XX. A alteração da toponímia do primeiro para o segundo nome é recente e teve um teor essencialmente político-administrativo. Aconteceu a 7 de fevereiro de 1959, com o Decreto-Lei 42.142. Se Chelas é a designação ainda hoje usada em vez da mais recente (Marvila), não sendo porventura a primeira unânime entre os actuais moradores, reunirá pelo menos algum consenso entre os que já viviam, e ainda vivem, no eixo industrial junto ao rio ou à linha de caminho de ferro, mas igualmente, entre os que estrearam os bairros dos Olivais e depois de Chelas, nas décadas de 1960 e 1970. Como refere Teresa Castro [no texto Azinhagas], alguns destes primeiros habitantes foram os construtores dos bairros de Alvalade e do Areeiro nos anos 1950. Migrantes que vieram da província trabalhar nas obras públicas, e que viviam em condições precárias e insalubres nos arrabaldes das áreas de construção.
Em 1959, no mesmo ano da reformulação administrativa da toponímia, é anunciada a intenção de construção de “casas de rendas moderadas para famílias de baixo rendimento” (Decreto-Lei nº 42.454, 18 de Agosto de 1959). No ano seguinte o Gabinete Técnico de Habitação da Câmara realiza os primeiros estudos do plano para Olivais Norte, Olivais Sul e Chelas, baseados no princípio de uma estrutura urbana plurifuncional e socialmente diversificada. Pensava-se num modelo de integração social, no qual coexistiriam diferenciações de edificado e correspondentemente diferentes categorias de renda. No entanto, por motivos vários, entre eles a demora da Câmara em adquirir terrenos aos particulares e as ocupações no período pós-revolucionário de Abril de 1974, o plano idealizado nunca foi posto em prática. Na realidade, as urbanizações que se inauguraram na zona oriental da cidade nessa década, e na seguinte, irão acabar por alojar principalmente pessoas que viviam em situação eminentemente precária (barracas), e outras, como as regressadas das ex-colónias. Esta delimitação social, que é também uma circunscrição de classe, determinou em boa parte o que será a realidade demográfica, cultural e económica das populações que ali se fixaram. Com reduzidas ligações ao resto da cidade e deficiências do ponto de vista arquitetónico e urbanístico, Chelas-Marvila permaneceu altamente isolada durante décadas. Se as comunicações de Marvila com o centro urbano foram desde os anos 1990 parcialmente mitigadas com o prolongamento da Avenida D. Rodrigo da Cunha e da Avenida dos Estados Unidos da América, elas são ainda hoje deficitárias ao nível dos transportes públicos (palavra de utente).
A alteração da toponímia da freguesia, e o reforço que continua a ser feito através de programas como “Viver Marvila” em 2009, ou mais recentemente do “Lisb@2020”, são estratégias que procuram apagar o estigma associado a este vasto território; mas ele é difícil de dissipar, consequência do agravamento consecutivo até aos anos 2000 de factores específicos “internos”, que derivaram ou se inscreveram numa realidade sócio-económica e histórica mais ampla, da cidade de Lisboa e do próprio país. Por outro lado, se a topografia e a geografia física desta área constituiu, e constitui, como noutros bairros limítrofes da cidade (Campo de Ourique, Serafina, etc.), um factor definidor da sua identidade cultural, ele colocou simultaneamente esse território e os respectivos habitantes, sob uma condição de exclusão, social e política. Certamente que o isolamento poderá, em várias circunstâncias, revelar uma forma última de privilégio, social e económico, mas nestes casos (Marvila e afins), ele representa um pretexto para a negligência e abandono por parte das instâncias político-administrativas, e pela sociedade em geral.
Observar como a paisagem física e social desta zona da cidade continua a ser re-elaborada e aperfeiçoada (queremos pensar que sim) após seis décadas, é uma demonstração de como o desenho das cidades (sobretudo nas áreas não consolidadas) está na realidade repleto de acidentes, percalços e equívocos; também eles são estratos de história. Nesse sentido, optar pela designação de Chelas é, em certa medida, resistir à erosão da história, e simultaneamente, um modo de sublinhar o sentimento de pertença dos seus habitantes e a identidade do bairro, até por quem lá não reside.
Ainda assim, acuso alguma estranheza na prática deste “olhar”, feito por aqueles que como eu não vivem em Marvila; é um olhar sobre uma realidade que não é “nossa” e à qual, justamente, não pertencemos; sobre algo que é, no fim de contas, pouco palpável no quotidiano de quem lá não reside. Marvila-Chelas é efectivamente para muitos lisboetas uma realidade cujo contacto acontece veiculado por notícias, pela consulta de dados e literatura especializada, ou feito de atravessamentos fugazes de automóvel em direcção a outra zona da cidade. Temos sobre esta área um olhar estrangeiro, alheio, e em certa medida, inóspito. Um olhar que não habita esses lugares.
É porventura também um olhar que continua à procura de resposta para a “questão social”, enunciada no final do século XIX, e na qual convergiram políticos, economistas, urbanistas, filósofos, urbanistas (e também provavelmente antropólogos, sociólogos e psicólogos). Uma questão que resultava de um estado de interrogação sobre a transformação radical do trabalho no contexto da revolução industrial, cujo impacto no processo de urbanização foi profundo. Hoje, mantêm-se as mesmas problemáticas, actualizadas em novas formas. Mas se à semelhança desse período, eram sobretudo os organismos públicos à procura de respostas, a eles juntam-se-lhes hoje, e de modo mais feroz, a iniciativa privada e empresarial, num processo que deseja ver subtraída a função de providência ao Estado. Face à necessidade de contenção do descontentamento social gerado no actual capitalismo tardio, esta não deixa de ser, como era à época, uma participação “interessada”, que deseja solucionar os problemas na medida do seu próprio benefício, político e económico.
I.
Não sei se estamos sempre no mesmo lugar.
Talvez. É claro que permanecemos. Mas se permanecemos, deixamos também de ver as coisas da mesma forma, como o muro na Azinhaga da Salgada de que fala o André Guedes. Até naqueles sonhos em que regressamos às topografias de sempre, vamos às vezes descobrindo as coisas com outros olhos.
II.
Uma das coisas que surgiu desta troca de impressões foi o encontro do Freud, do Benjamin e da Salgada numa azinhaga da zona oriental de Lisboa. Os dois primeiros até se podiam mesmo ter cruzado. Bastava terem-se exilado em Lisboa. Imagino-os a deambular na Azinhaga de Marvila, fotografada em 1938. Podia perfeitamente situar-se em Nápoles, cidade de que ambos gostavam tanto. A Salgada, claro, seria uma assombração nos seus caminhos, como a maior parte das mulheres nestas histórias de deambulações.
Espero que o fantasma da Salgada ainda ande por Marvila, juntamente com os fantasmas das escravas que certamente vieram com ela do Recife.
III.
Fui pesquisar Azinhaga da Salgada.
Conhecida também por “Alto das Conchas”, «topónimo que se fixou na memória do local por nele abundarem vestígios fósseis de conchas de moluscos do Miocénico lisboeta, ou seja, entre cerca de 20 e 7 milhões de anos atrás. » (in Toponímia de Lisboa).
Gosto de fósseis e de pensar que o Miocénico foi Lisboeta antes mesmo de Lisboa existir, como se a cidade fosse uma inevitabilidade geológica. Gosto de pensar nos solos de Chelas repletos de conchas e de esqueletos de mastodontes e crocodilos gigantes: enobrecem o entulho que assombra o bairro. Gosto de saber que o muro e a Azinhaga da Salgada resistem, como um “anacronismo”. Um anacronismo de Chelas. São anacronismos desses que fixam os fantasmas – esses sim, ficam sempre nos mesmos lugares. Todos os lugares humanos precisam de fantasmas. Clicando num mapa, vejo que a Azinhaga da Salgada parte da Azinhaga da Bruxa, no Beato. Faz sentido, claro. A toponímia das azinhagas é uma história de assombrações. No começo, era a bruxa.
IV.
Quem seria a bruxa que deu nome à azinhaga?
Quem seria o homem que deu com os ossos do crocodilo de Chelas na Quinta da Farinheira em 1941?
V.
Parece que na Quinta da Salgada funcionou uma comissão de moradores até aos anos 1980. Não sei o que pensarão os moradores de tudo isto. São eles que devem falar. Do permanecer, do se sentir ou não no mesmo lugar apesar de tantas transformações. Das memórias e dos esquecimentos. Dos muros rasantes, dos atalhos silenciosos e mal iluminados. Do património de fantasmas. Da possibilidade de dignificar o entulho e a vegetação ruderal. Do saber ver com outros olhos.
Não sei se acredito nas palavras que um dia pendurei no espelho da casa de banho, mas todas as manhãs as retenho de fugida depois de noites em que nem sempre os sonhos são capazes de apaziguar as minhas memórias:
«Rien n’est réel sauf le hasard» disse Paul Auster.
O acaso deste trabalho «Trauma e Território» feito a várias mãos parece ter outra vez despertado o sentido dessa frase.
Começo pelo princípio, pelo local mágico da minha infância, um espaço onde dentro dele cabia, bem ao centro de tudo, a pessoa mais importante, o meu pai. Quando visitava aquele lugar era ele que procurava.
Bastante longe de minha casa a viagem ia-me aproximando de Lisboa, primeiro o bairro, a seguir a rua, depois a janela de onde ele acenava, uma pequena janela num enorme e velho edifício e esse local é o Museu Geológico. Foi aqui que o meu pai geólogo passou a maior parte da sua vida antes de adoecer enquanto eu preparava este trabalho. Esperamos regressar os dois em breve.
A paixão dele pelos milhões de anos da Terra e por aquele museu que eu frequentei tantas, e tantas vezes e onde, subindo uma íngreme escada sempre encontrava a mesma pedra cheia de rastos de estranhos animais, o mesmo enorme cristal e, já lá dentro, um crocodilo de boca bem aberta como se risse de toda essa minha estranheza. Ali encontrava também um silêncio único, uma paz que ainda hoje é palpável, um cheiro de ceras e madeiras exóticas e a presença estonteante de mil objectos estranhos. Foi aí, talvez, que descobri que também queria perceber tudo o que a terra ocultava, encontrar em cada estrato mais memórias enterradas foi aí, talvez, que encontrei a paixão pela arqueologia – ESCAVAR PARA RECORDAR...
Achei, nos textos que me foram enviados por pessoas desconhecidas muitos sentimentos partilhados, especialmente agora em que os meus dias têm sido povoados de memórias, encruzilhadas e desassossegos, talvez mesmo traumas. Escrevo estas linhas depois de sublinhar as mesmas palavras em todos eles: memórias, cidade, infância e azinhagas.
Procuramos, fugimos mas voltamos sempre ao mesmo lugar...