Bobina da Coleção de Filmes de Família de António de Sousa, 1960-70 (película afetada pelo síndrome do vinagre)
Não. Qualquer expressão artística coerente expressa de imediato a coerência do passado, a passividade. A memória deve ser destruída, na arte. Devem arruinar-se as convenções da sua comunicação. Desmoralizar os seus amadores. Que trabalho, esse! Como na visão turva do álcool, a memória e a linguagem do cinema desfazem-se juntas.
Guy Débord, Contre le cinéma
As cidades, mesmo que durem séculos, são na realidade grandes acampamentos dos vivos e dos mortos, onde poucos elementos permanecem como sinais, símbolos, avisos. Quando a festa acaba, os elementos da arquitectura estão em farrapos, e a areia volta a devorar a rua. Não há mais nada a fazer a não ser retomar, com persistência, a reconstrução de elementos e instrumentos na expectativa de outra festa.
Aldo Rossi (Autobiografia científica) citado e traduzido por Diogo Seixas Lopes em Melancolia e arquitectura em Aldo Rossi
Andara a vaguear por um mundo imaginário que nem eu era capaz de imaginar bem. Este panorama zero parecia conter ruínas ao contrário, isto é, todas as construções que tivessem sido construídas. É o oposto da ruína romântica: estas obras não caem em ruínas após a sua construção, tendem para a ruína ainda antes de serem construídas. Este cenário anti- romântico evoca a ideia hoje depreciada do tempo e de outras coisas fora de moda. As periferias existem sem um passado racional, fora dos «grandes acontecimentos» da história [...]. Uma utopia sem fundo [...]. Passaic parece estar cheia de «buracos», se comparada com New York City, que parece bem empacotada e sólida; num certo sentido, estes buracos são lacunas monumentais que evocam, sem o querer, os vestígios de um conjunto de futuros ao abandono.
Robert Smithson em Tour of the Monuments of Passaic (1967)
citado por Leonardo Lippolis em Viagem aos confins da cidade— A metrópole e as artes no outono pós-moderno (1972-2001), tradução de Margarida Periquito (para a edição da Antígona, 2016)
“A relação entre a ausência de uso, de actividade e o sentido de liberdade, da expectativa, é fundamental para entender toda a potência evocativa que os terrain vague das cidades têm na percepção das mesmas nos últimos anos. Vazio, portanto, como ausência, mas também como promessa, como encontro, como espaço do possível e expectativa”. A atenção para estes lugares indefinidos, esquecidos, marginais e remotos do mundo moderno, estas áreas “des-habitadas”, “in-seguras” e “im-produtivas”, partia para o arquitecto catalão de um apelo existencial, perante o fenómeno de privatização e estetização do espaço público contemporâneo, no qual “o papel da arquitectura se torna inevitavelmente problemático”, tendo em conta que a actividade dos arquitectos opera no sentido da sua colonização ou apagamento. Como espaços potenciais da sociedade futura, Solà-Morales deixa a pergunta: “Como pode actuar a arquitectura no terrain vague para não se transformar num instrumento agressivo dos poderes e das razões abstractas?”
Manuel de Solà-Morales citado, traduzido e comentado na introdução a Viagem ao Invisível: Espaço, Experiência, Representação por Luís Santiago Baptista e Maria Rita Pais (2019).
Queimem-se os filmes, são mercadoria. A arte é esse incêndio, nasce com aquilo que queima.
Jean-Luc Godard, voz off no segment 4B das Histoire(s) du cinéma.