Fragmentos de conversa com moradores de Alvalade e Marvila organizada na Casa dos Direitos Sociais – Espaço Flamenga
Fevereiro, 2020
Maria do Carmo. Já vivo ali há cerca de 50 anos. Aquela zona não se alterou muito. Quer dizer, a casa onde eu vivo já existia (óbvio) mas no final dessa zona, onde as casas eram todas baixas, de 3o andar para não terem de pôr elevador, casas individuais com jardim - essas foram todas vendidas e agora são prédios altos. Essas, desapareceram todas, porque, digamos, as construções terminavam no nosso lote. Temos a vantagem de ter a mata – antes não se ia à mata porque havia drogados, ladrões... antes não ia à mata com a minha filha.
Sara. Mas naquelas fotografias do pai, temos umas fotografias lá da mata com vocês todos contentes. E eu dizia, “mas porque é que eles podem ir à mata e eu não?”…
Maria do Carmo. Pois, aquilo era perigoso. Hoje em dia não. A mata está muito bem arranjada e, principalmente nos fins-de-semana, está cheia de miúdos e de pessoas que vão lá fazer piqueniques e churrascos. A mata é um encanto. E por isso não sentimos tanto a falta de jardins. Fora isso, em relação às habitações, aquela Alvalade que eu conheci já estava mais ou menos... Era a zona central, junto à Igreja...
Inês. Quando foi para lá viver, é isso? Alvalade já estava toda estabelecida?
Maria do Carmo. Já. Não era muito antiga. Por exemplo, a casa para onde eu fui viver só tinha tido um inquilino e por pouco tempo. Eram casas novas - agora já não são…
Mas o bairro todo - e isso ainda hoje sinto - é um bocado aldeia. Embora muitas lojas já tenham fechado, ainda há muitas abertas. Ainda há a barbearia, a drogaria, e as pessoas conhecem-se. Nós vamos lá e dizemos, “olhe, eu hoje não tenho dinheiro vou precisar de... tudo bem!” Nem eu me sinto incomodada com isso, nem eles. Portanto, Alvalade ainda tem muito de aldeia.
Mas um lugar para as crianças se reunirem, isso não há. Faz falta. Mas também temos o INATEL ali logo, e vão para lá jogar os mais velhos e assim…
Sara. Agora já não deixam entrar. Já na minha adolescência eu entrava à socapa. Saltava pelo portão. Em determinada altura, as pessoas deixaram de poder entrar... Ah! Estás a falar do INATEL? Eu estou a falar do Laboratório [LNEC]. Esquece. Pensei que estavas a falar do parque em frente à tua casa…
Inês. Há um projeto que se chama “Vidas e Memórias de Bairro”, que agora está a ser desenvolvido na Biblioteca dos Coruchéus, que organiza sessões com moradores e numa dessas sessões – eu não fui, mas a Fátima foi... - convidaram o arquitecto José Manuel Fernandes para a conversa, e ele falou de como foi construído e desenhado o bairro, não foi?
Fátima. Ele aliás recusa essa ideia de “bairro”. O bairro de Alvalade não é um bairro, não foi pensado como bairro, e sim como uma cidade-satélite.
Inês. Sim, os arquitectos falam de Alvalade como de um bairro desenhado para ser autossuficiente.
Maria do Carmo. E ainda hoje é. Em Alvalade temos tudo.
Inês. Então foi eficaz? Não é preciso sair do bairro?
Maria do Carmo. Não. Temos tudo. Só precisamos de sair por qualquer coisa especial, de resto temos tudo.
Teresa. Eu ia pegar nisso, na relação entre esta zona e Alvalade. Acredito que alguém de Alvalade não tenha razões para vir aqui, mas nós tínhamos muitas razões para ir a Alvalade. Tínhamos de ir à Avenida da Igreja porque aqui não existia comércio, tínhamos razões para ir à Avenida de Roma... Era normal.
Inês. Mas ao mesmo tempo não há uma boa rede de transportes.
Teresa. Mas muitas pessoas vão a pé. E continuo a ver isto, muitas pessoas de manhã, a irem a pé. Vão pela Dom Rodrigo da Cunha. Saem daqui desta zona, perto do Valsassina e do campo de golfe, descem pela rua e depois seguem a pé pela Dom Rodrigo da Cunha até à Avenida da Igreja. Muitas, muitas pessoas, muitos casais.
Sara. Sim. Eu não estive presente, mas na altura tinha estado a trabalhar com o arquitecto Pedro Gouveia e ele falou-me do que se tinha passado quando veio para cá o Rock in Rio. Tinha havido um processo participado aqui no bairro, as pessoas tinham sido ouvidas, as crianças tinham feito desenhos daquilo que queriam que o parque [da Belavista] fosse, as pessoas tinham dito o que é que fazia falta, o que é que devia existir e como é que devia ser. Isto do parque passar de um lado para o outro da estrada e fazer a ligação entre os bairros do Armador e da Flamenga, por exemplo, foi pedido pela população. Podias passar da Flamenga para o Armador pelo jardim. E havia uma série de outras coisas projetadas e uma série de iniciativas previstas e entretanto não sei porquê apareceu a proposta do Rock in Rio e o parque foi vedado e pronto.
Teresa. Mas ainda há passagem.
Sara. Ainda há, mas entras no parque e só consegues sair lá para…
Inês. E a ligação entre as freguesias de Marvila e Alvalade, que o parque também poderia permitir, sabes se isso foi discutido nesse processo?
Teresa. Eu já consigo ir com os miúdos de bicicleta entre, por exemplo, o Bairro do Armador e sair lá em baixo ao pé do... Não sei se aquilo é Areeiro, mas se eu quiser posso continuar pela Estados Unidos da América.
Sara. Pela ciclovia, é isso?
Teresa. Acho que tem ciclovia, sim.
Inês. As portas estão abertas?
Teresa. Não tem portas, sequer, é aberto. Se eu entrar no Parque da Belavista.... Sim, é perfeitamente possível ir a pé. É uma continuação do Parque da Belavista e chama-se Parque do Vale da Montanha, deverá ter sido a Quinta do Vale da Montanha e acho que era aí a Quinta das Holandesas.
Inês. É que o Parque da Belavista aqui junto à Flamenga tem portas, mas do lado de Alvalade estão todas fechadas.
Sara. Nasci e cresci em Alvalade, e aqui estou.
Nara. E como é que tu vês então estas ligações entre Alvalade e Marvila?
Sara. Então, eu acho que nunca tinha vindo para este lado até me porem a trabalhar no Bairro do Armador. Comecei a trabalhar no Armador em 1998. E quando me disseram em que zona iria ser o espaço comunitário eu, claro, meti-me no carro a ver que zona era aquela. E andei por ali com o carro e depois fui falar com a pessoa que me tinha contactado, disse-lhe que aquilo tinha muito bom aspeto, que gostava dos prédios, achei que era uma zona luminosa, senti-me bem acolhida. E ela perguntou-me se eu tinha a certeza que tinha ido ao Bairro do Armador. Mas eu gostei do sítio, os prédios são às riscas, gostei, o que é que se há-de fazer... Mas ela achava que eu não tinha ido ao sítio certo.
E há bocado quando estavam a falar dessa ideia do fechamento do bairro de Alvalade... Nunca tinha percebido isso e fiquei mais apaziguada comigo própria. Porque quando eu tinha para aí 12 ou 13 anos, saí pela primeira vez com um grupo de amigos da escola, e fomos até ao Areeiro, ou qualquer coisa do género, ao cinema, ou assim. Foi uma das primeiras saídas sozinhos sem pais. E depois, ao voltar para casa, eles perguntavam quais eram os autocarros que iam para minha casa, e eu não sabia. Não fazia a mínima ideia. Nunca tinha tido de fazer esse tipo de escolha. Não sabia. Lá está, a vida fazia-se toda no bairro.
Fragmentos de conversas com moradores do Bairro das Amendoeiras organizada na Associação de Moradores do Bairro das Amendoeiras (AMBA)
Fevereiro, 2020
Hermínia. Andei com a minha irmã na quinta do Morgado, antes de casar. Lembro-me de ir ao aeroporto ver chegar os aviões
Manuel. As pessoas ao domingo iam ver os aviões!
marido da Hermínia. Havia um terraço…
Inês. Temos alguns filmes onde se vê esse terraço. Agora está tudo tapado.
Hermínia. Aquilo era uma grande coisa, ao domingo ir àquela varanda ver levantar os aviões. Ia muita gente!
Manuel. Havia excursões. E ver a Fonte Luminosa.
Hermínia. Também ia ver. A minha irmã levava-me a ver a Fonte Luminosa.
Manuel. Eram grandes sítios de atração em Lisboa, da Nova Lisboa. Aquele filme do Paulo Rocha, Verdes Anos com a música do Carlos Paredes: é um filme notável que dá a imagem dessa nova Lisboa que foi construída nos anos 60.
Ainda hoje, é esclarecedor para quem siga a história do cinema português, olhar e ouvir o princípio de Os Verdes Anos. Lisboa é virada do avesso, e olhada das traseiras, nessas fulgurantes panorâmicas e travellings iniciais, fica sem centro nem cerne, num amontoado de terrenos baldios, matagais, quintalecos não cultivados, que se misturam com a arquitectura de caixotes que a começava a invadir, da Avenida dos Estados Unidos da América à do Aeroporto, e da Cidade Universitária ao Hospital de Santa Maria.
E, enquanto isso vemos, lixeira ou estaleiro informe, ouvimos (texto de Nuno de Bragança) as cruas palavras confiadas a Paulo Renato: “Da primeira vez que vi a cidade de Lisboa, pensei comigo mesmo: esta terra é como uma Madama que tem que ser engatada com muito jeito. Nada de pressas, nada de deitar a mão antes de tempo. É preciso andar devagarinho, com olho vivo e não cheirar os pés.”
Não era um “programa”, mas ficou como tal. O protagonista – um sapateiro – perdeu-se por ficar junto ao solo, junto a esses mesmos pés (sapatos e pés são um dos leitmotiv da obra) e acaba a dizer que tanto lhe faz ter olho vivo ou olho morto. E perde-se, sobretudo, quando é arrancado a esses baldios lamacentos e levado a dois passeios pela cidade – um, diurno, outro, nocturno – em que se estabelece mais a ruptura do que a continuidade entre espaços igualmente espectrais. (…)
O espaço urbano descentra-se entre os bairros da “má-vida” (Alcântara, Cais do Sodré) e as avenidas então chamadas novas, onde se recriam nos átrios figuras de pesadelo e florestas tropicais.
Que imagem, que imaginário buscou Paulo Rocha como contraponto? Sintomaticamente, os painéis de Almada da Cidade Universitária com o “deserto da vida” que na mitologia de Almada, a cidade também sempre foi.
João Bénard da Costa, in Lisboa a 24 Imagens, 1994