© Arquivo Municipal de Lisboa
Teresa. Não sei se tens essa experiência, Nara, mas como não tínhamos cinema aqui, íamos ao Alfa, por podermos ir a pé, ou de autocarro, por ser o mais próximo. Eu, com o meu grupo dos Olivais, muitas vezes ia a pé e ia encontrando amigos pelo caminho, pessoas que vinham daqui…
Filipe. Pela Azinhaga das Teresinhas…
Teresa. Sim, e descíamos... eu encontrava até outros caminhos…
Nara. As Teresinhas! Quantas vezes desci e subi aquilo!
Teresa. E íamos encontrando amigos pelo caminho. Combinávamos vários pontos de encontro ao longo do percurso e depois íamo-nos juntando, juntando, para ir ao cinema – nas férias da Páscoa, e depois nas férias do Verão também, porque não havia cinema próximo. Aquele acabava por ser o mais prático e tinha aqueles filmes... O King tinha filmes assim mais intelectuais…
Sara. E ao Cinema Alvalade?
Teresa. Não íamos tanto…
Bárbara. Os Alfas eram bem mais perto. O Alfa era na Estados Unidos da América…
Teresa. Na Gago Coutinho.
Sara. Na Estados Unidos era o Quarteto.
Nara. Ainda existe?
Sara. Não.
Teresa. Íamos à tarde, para podermos ir a pé. Ver o Assalto ao Aeroporto, e assim - acho que foi o último filme que vi lá. Era uma coisa engraçada porque... aqui os transportes ainda eram piores, mas nos Olivais só tínhamos três autocarros e, portanto, tínhamos de organizar as coisas de maneira a descobrir um que passasse por algum sítio com cinema. Como o 10 e o 19 só passavam no Alfa, nós íamos mais ali para aquele lado. Não íamos tanto para o centro de Alvalade.
Nara. Eu tive algumas ligações com Alvalade porque quando vim da Guiné, com 9 anos, depois de estar em Algés alguns anos, eu e os meus irmãos estivemos num internato em Alvalade. Anos depois, em 86, a Câmara deu-nos aqui uma casa e a partir daí íamos a Alvalade à Igreja. Eu ia às eucaristias na tarde de domingo e ia ao mercado para os legumes.
Sara. Ainda há muita gente no bairro hoje que diz que vai fazer as compras a Alvalade.
Bárbara. Mas há mercado aqui, ou não?
Nara. Aqui não há. Há o Pingo Doce.
Filipe. Havia um mercado ali na Zona I. Não sei se ainda há.
Sara. Já não.
Nara. Uma coisa que existia há alguns anos e que se está a perder é o nome de Chelas. Agora quer-se banir este nome, não é?
Inês. Estávamos a falar disso há bocado.
Teresa. Quando a Nara falou da Igreja lembrei-me que a Igreja, e sobretudo os frades franciscanos que vieram para cá, tiveram, na minha opinião, um papel muito importante de dinamização, de união das pessoas.
Inês. A São Maximiliano Kolbe, por exemplo?
Teresa. Sim. E aliás o Frei Fabrizio foi a primeira pessoa que me disse, talvez em 2011, “já reparaste que estão a tapar o nome, a colocar fitas na sinalética de Chelas? Estão a mudar tudo para Marvila.” E eu não tinha reparado.
Nara. Vim para aqui em 86. Cresci com “Chelas”. Hoje, ouvir “Marvila”... Não me identifico.
Filipe. Parece que se está a apagar uma memória, não é?
Nara. Sim. Daqui a uns anos, quando eu tiver entranhado este novo nome, talvez aí já tenha encontrado alguma identificação. Mas agora ainda é estranho.
Inês. Sentes-te estrangeira na tua própria terra.
Nara. Sim, sim, isso mesmo.
Fátima. Até porque Marvila é numa outra zona, não é?
Teresa. Exatamente. E é um nome lindo, mas é o nome de uma freguesia e de uma zona muito específica. É diferente dos Olivais onde tudo é Olivais - Olivais Sul e Olivais Norte, e Olivais Velho, sim, mas é tudo Olivais. Aqui é diferente. Este era um território dentro de uma freguesia, e de repente isso foi alterado. E irem buscar nomes antigos que algumas pessoas não percebem bem de onde vieram, essa toponímia que já tinha desaparecido, as quintas, de que poucas pessoas se lembravam, e que vieram agora dar estes nomes... É estranho.
E acho que uma pessoa mais velha mesmo de Marvila deve achar estranho de repente chamar-se “Marvila” a tudo - porque é o seu sítio e de repente outros sítios também são “Marvila”, deve ser confuso. Para pessoas com mais idade imagino que seja complicado. Para o meu pai, por exemplo: Chelas é a igreja de São Félix, é o Convento de Chelas, é a Estrada de Chelas, não é mais do que isso. Mas para a minha geração Chelas é todo este território, foi assim que sempre ouvimos chamar.
Inês. Estamos a descobrir que os moradores têm perspetivas ou relações diferentes com os nomes, também. E não sei se não terá que ver com uma certa relação que têm com o passado. Ou seja, se isso não indica que talvez isto não seja simples e que alguém que tem boas memórias de um determinado sítio, quer continuar a relacionar-se com esse sítio, e que quem tem más memórias quer apagar o nome desse sítio. Ou, por outro lado, também pode ser uma coisa de futuro – é que às vezes parece-me que as pessoas que falam da necessidade de mudar os nomes, são as pessoas que se calhar têm relações privilegiadas com os poderes políticos.
Teresa. Sem dúvida que sim. E foi por isso que a mudança avançou e que as pessoas conseguiram concretizar esse desejo. E acho que tens toda a razão, tem a ver com as memórias. Para essas pessoas o nome “Chelas” está associado a coisas más, e para nós que crescemos aqui e que temos boas recordações da nossa infância e da nossa adolescência e juventude, Chelas não está associada a coisas más.
Filipe. Os meus pais vieram, mas sempre tiveram grandes pudores de dizer que viviam aqui. Não gostavam nada do sítio. Nunca se conseguiram alicerçar neste solo. Ainda hoje... sim, os meus pais... Isto foi uma coisa muito complicada. Vieram do centro da cidade com comércio ativo, com centro de saúde, com uma série de coisas. As ruas eram completamente limpas e pavimentadas. E depois vieram para um bairro que estava a ser construído com pessoas de todos os credos, raças, prantos, toda a gente era diferente entre si, aqui. E eles nunca... Eu apaixonei-me mesmo por crescer aqui. Gostei de crescer aqui. Mas existiam essas pessoas... Como por exemplo o que acontecia no Bairro das Amendoeiras onde havia um complexo que era só para os militares e eu tinha amigos cujos pais eram militares e tiveram acesso a uma casa ali. E os pais deles também não gostavam de dizer que moravam em Chelas, não era uma coisa boa, não era bem visto. Eras filho de um deus menor por morares em Chelas.
Teresa. A ideia de mudar e de batizar as diferentes zonas de Chelas com os nomes de bairros e quintas, partiu precisamente dos moradores do Bairro das Amendoeiras. Pelo menos o Manuel Saraiva que é o presidente da associação (AMBA), diz que sim, que foi um esforço muito grande para mudar, e que agora querem mudar também o nome da estação de metro. Têm esse desejo. Já conseguiram, por exemplo, mudar o nome da agência do Banco para “Agência de Marvila” - porque era de Chelas.
Filipe. Querem mudar o metro de Chelas para outra coisa qualquer?
Teresa. Para Amendoeiras, pelo menos, ou então Marvila.
Filipe. É esquisito, não é?
Inês. A estação de Chelas é nas Amendoeiras? É essa?
Filipe. É. Aqui é Belavista.
Inês. Eu também achava esquisito. Nas sessões do Laboratório Cidade/Arquivo que organizámos na Biblioteca de Marvila, quando discutimos a questão do nome, fiquei com a ideia de que essa mudança era uma imposição vinda dos políticos. Mas depois quando, no Bairro do Condado, conversámos com o Avelino [Ferreira – conversa disponível no dia 22 deste programa], ele disse “Eu, que vivo aqui, trabalhei muito para isto se chamar de outra maneira.” E eu fiquei confusa. Ou com a ideia de que é muito mais complexo do que pensava. Dentro das pessoas, quero dizer: há coisas que se querem esquecer do próprio passado e que depois são projetadas no nome, que é coletivo. É complicado.
Ernesto. Posso? Chamo-me Ernesto Serafim. Vivo no Bairro dos Alfinetes, em Marvila e faço parte do Grupo Comunitário 4 Crescente. E sobre isso, o que vos posso dizer... Desde 1965 que moro em Lisboa. Morava na Rua do Sol a Chelas e percorria toda aquela zona e naquela altura não se ouvia falar de Marvila. Falava-se de Xabregas, Poço Bispo e Chelas, mas de Marvila era muito raro.
Só como referência, na zona ali da Prodac, toda a gente conhecia o Bairro Chinês pelo mercado que lá faziam ao domingo. O Bairro Chinês era conhecido como Bairro Chinês, mas num tom depreciativo. O Bairro nunca se ligou muito bem com a freguesia até porque as pessoas que ali viviam eram pessoas migrantes: chegavam, começavam a construir uma casinha, chamavam o primo, chamavam o irmão, e assim apareceu o bairro da Prodac. 99,5% daquele bairro é de pessoas do Norte. Da Beira Baixa, Beira Alta e até mais para cima. E ali não se conhecia Marvila.
De Chelas... a Estrada de Chelas, aí é que dizem que é a fundação de Chelas. E depois quando fizeram os bairros até à Zona M... Quer dizer, a Zona J foi feita antes da M mas abafou-a porque tinha má fama. Havia uma separação entre a Zona J e a Zona I. Havia uma fronteira, apesar de todos se darem bem. Por causa da fama do bairro...
Inês. Vocês, os mais novos, já ouviram falar da Zona J?
Todos. Não.
Ernesto. Quando fizeram o bairro da Zona M houve uma grande mudança. O Bairro Chinês, toda a zona ao pé da linha de comboio, era tudo barracas e as pessoas que aí viviam foram instaladas na Zona M.
Marvila só teve mais projeção agora com a revitalização ali da zona das fábricas. Havia a Fábrica do Sabão, a Fábrica da Pólvora, a Manutenção Militar, a fábrica dos frigoríficos, aquilo era tudo operários e estivadores. E, sobretudo com o fim da Guerra Colonial, deixou de se justificar o trabalho para a pólvora ou para a Manutenção Militar, deixou de se necessitar desses operários e então daí para a frente, a partir de 74/75, houve uma alteração muito grande naquele bairro, por causa dos desempregados. Começou a haver muitos desempregados. Mandavam-nos embora, alguns ainda novos, e as pessoas começaram a deslocar-se para outros sítios.
Depois vieram aquelas verbas da CEE para eliminar as barracas e aí deu-se uma grande revolução, as pessoas foram postas em diversos bairros. Eu vim de Chelas, como já disse, da Rua do Sol a Chelas, houve outros que vieram da Ajuda... começou-se ali a fazer outra vez uma grande misturada de pessoas com hábitos totalmente diferentes. Mas felizmente, na minha opinião como morador, eu acho que está a resultar. As pessoas estão a ficar integradas. Eu acho que Marvila hoje em dia... agora é só Marvila. Não há mais Chelas.
Inês. Andámos à procura das tabuletas que ainda dizem Chelas. Encontrámos uma há pouco tempo em Alvalade.
Ernesto. Mas dantes havia muitas. Porque era Chelas, não era Marvila. Onde é que fica Marvila? Agora, para mim, é o Bairro dos Alfinetes, mas antes não havia Bairro dos Alfinetes. Aquilo era tudo obras, tudo quintas, o Bairro dos Alfinetes foi implantado ali há 20 anos.
João. O Bairro dos Alfinetes foi uma criação da própria municipalidade. O terreno onde está a casa do Sr. Ernesto fazia parte da Quinta do Marquês de Abrantes, que é do outro lado da linha e como havia um palácio deste lado, que é o Palácio dos Alfinetes, a Câmara, para distinguir o realojamento do Sr. Ernesto do realojamento das pessoas do Marquês de Abrantes que vieram todas do Bairro Chinês, deu o nome de Bairro dos Alfinetes ao Bairro do Sr. Ernesto. Mas são bairros que estão a 50 metros de distância entre si. A questão é que quiseram distinguir as pessoas que já estavam no território há mais tempo, que são as pessoas do Marquês de Abrantes, que estão mais perto da Prodac, das pessoas que vivem nos Alfinetes, que vieram de outros sítios. Foi opção da Câmara.
Ernesto. O nome que eles puseram foi para separar, para fazer a separação. O Bairro dos Alfinetes é um bairro relativamente novo, tem 20 anos sensivelmente, com a escola e agora a Biblioteca - e ainda bem, a Biblioteca foi uma das melhoras coisas que eles fizeram.
João. O Sr. Ernesto vive na Zona L do Plano de Urbanização de Chelas. A expressão não era muito utilizada, mas se formos ver o mapa...
Nara. Zona L? Essa não conhecia. Conheço a I, a M, a N1, a N2, a J, mas a L nunca tinha ouvido... Em 1986, vim morar aqui na Zona N1 de Chelas. Vivi cerca de 25 anos na Zona N1 de Chelas. E hoje em dia estou numa crise de identidade porque agora o nome é Bairro da Flamenga em Marvila e não em Chelas. Estou assim um bocadinho perdida geograficamente e politicamente, administrativamente, mas aqui no coração estou na zona N1 de Chelas.
Vou dizer só mais uma coisa: é que como eu tive 25 anos de N1 de Chelas, então hoje não estou ainda aculturada. Mas se calhar daqui a 25 anos, se eu viver até lá, reunir-nos-emos aqui de novo e eu digo: “olha, eu sou do bairro de Marvila”.
Teresa. É interessante a Nara falar disso, porque nós, como membros do grupo comunitário do Bairro da Flamenga, dizemos sempre Bairro da Flamenga, nunca dizemos Marvila.
Nara. Pessoalmente, gosto de assumir o N1 de Chelas. É com o que eu ainda me identifico. Porque eu cresci na N1 de Chelas e não no Bairro da Flamenga, mas ainda hei-de chegar lá...
Rogério. O trabalho comunitário, para mim, começou em Carnide e, curiosamente, os dois territórios a seguir foram a Quinta Grande da Charneca e as Galinheiras, e depois foram os Lóios, aqui em Chelas. Para mim sempre foi Chelas e será Chelas. Nessa altura a Flamenga estava associada ao grupo comunitário dos Lóios, havia uma junção, só depois é que se separaram. E pronto, e agora continuo ligado aos grupos comunitários, o mais recente é o das Fonsecas e Calçada e o Pendão.
Vivi muitos anos nos Olivais e a minha referência identitária é Olivais, como a da Teresa. E nos Olivais, Chelas era Chelas, não é? Isto não tinha nada e nós vínhamos para aqui brincar ou fazer piqueniques e coisas do género. Marvila, era ir ao Poço do Bispo apanhar o elétrico operário às 7 da manhã. Eu ia trabalhar com o meu pai, ele era estivador, da zona industrial, e Marvila era isso. Não era isto, era outra coisa completamente diferente. Isto era Chelas.
Ernesto. Custava 9 tostões, o bilhete operário.
Rogério. Fazia o trajeto da Almirante Reis, toda até ao fundo, e depois ia para a Veiga Beirão, onde estava a escola, no Largo do Carmo - local histórico, portanto.
Mais recentemente estou a morar em Alvalade, na Avenida dos Estados Unidos, no prédio do Ministério de Educação. Quando eu era pequenino - tinha para aí 2 anos - a minha mãe, que era mulher-a-dias, trabalhava num bairro social com pessoas de fracos recursos económicos. E a minha mãe trabalhava numa casa no Pote D’Água, mas do lado do LNEC, e quando ela ia trabalhar eu tinha de a acompanhar. E continuo a ter uma ligação a essa zona porque o senhor do talho tem uma horta numa rua do Bairro de São João de Brito, e eu tenho a sorte de ter favas, tomate...
Maria do Carmo. Nos Olivais, na Eça de Queirós, onde eu dava aulas, de vez em quando tínhamos alunos de Chelas. E ouvia-se sempre “olha, aqueles são de Chelas”.
Sara. Quem é que dizia isso, os professores ou os alunos?
Maria do Carmo. Os alunos é que o diziam. Nós também sabíamos, pela inscrição, mas dizia-se isto pejorativamente: “aqueles são de Chelas”. Mesmo na escola, eles formavam grupos à parte, não se misturavam. Não eram dos Olivais, mas não sei porquê muitos iam para lá.
Teresa. Muitos, muitos, muitos. Muita gente que andava nas escolas dos Olivais era de Chelas.
Maria do Carmo. Havia bastantes, não eram casos pontuais os alunos de Chelas. Cá fora, no recreio, formavam um grupo à parte.
Inês. E quando é que veio aqui para o Condado... ou para a Zona J...?
moradora. Ah, isso foi depois quando me casei, em 80.
Inês. É uma pergunta que nos tem andado na cabeça – identifica-se com o Condado ou com a Zona J?
moradora. Com a Zona J.
morador. Condado, Condado.
morador. Zona J tornou-se um bocado complicado, desde o filme [Zona J, Leonel Vieira, 1998]. O filme veio dar-lhe uma conotação...
morador. A gente identifica-se com a Zona J, agora o Condado... Pronto, ok, vamos habituar-nos a isso.
Inês. Mas é uma coisa de fora, não é? Ou seja, imaginam que fora há uma ideia sobre a Zona J que não é a ideia que vocês têm. Ou é?
morador. Não somos nós, os habitantes, que vamos falar da imagem do bairro. A gente às vezes ouve dizer isso e aí fazemos a inversão: “pá, olha que não é o que dizem; olha que não é assim tanto”. Mas é um bairro problemático, é sim senhora.
moradora. É o que eu digo também.
morador. Foi!
morador. Ainda é.
morador. Sim, ainda é. Mas hoje está mais fechado nesse aspeto. Já não há tanto esses problemas que antigamente rotularam o Bairro, e inclusivamente deram origem ao filme...
moradora. Eu vi o filme. É horroroso!
Inês. Pelos vistos aquele filme foi muito importante para fixar uma imagem errada do bairro.
morador. Exatamente!
moradora. E ainda há muita gente que, quando se fala em Chelas... “Ah, Chelas, deus me livre!”
morador. Quem não conhece ou nunca cá veio, “Chelas” ou “Zona J” está conotado com o que viram (ou não viram) no filme.
Inês. A importância de uma imagem, ou de um filme…
moradora. E eu disse assim, “vou à farmácia lá acima à Zona I”, e toda a gente, “Ai, a esta hora?!” “Eu vou!” E fui. Era meia-noite e meia-hora, fui pelas barracas, lembra-se das barracas?
Inês. Do Bairro Chinês?
moradora. Não, não, aqui, do Bairro do Condado!
Inês. Da Quinta da Farinheira…?
moradora. Entre aqui e a Amendoeira. Fui. Nunca vi o menor dos problemas. Nunca tive um problema, nunca, nunca. Ainda hoje vou à meia-noite, à uma hora... não tenho medo de andar aqui.
Inês. As pessoas criam as suas ideias, não é?
moradora. Outra coisa, Maria José: não é sempre, mas às vezes... bom, eu saio muitas vezes à noite quando vou para as reuniões lá para Alvalade, e eu tenho mais medo de estar ali do que aqui. Apanho o autocarro e saio logo a correr!
moradora. Eu sempre tive medo de andar em Alvalade. Trabalhei lá num café e digo-lhe...
moradora. Sou sincera, tenho medo de andar na rua. Tenho. Sabe porquê? Não se vê ninguém! E assaltam muito as pessoas.
moradora. Eu vou muito a Alvalade. Para já tenho lá pessoas amigas, ao pé da Igreja. E para qualquer compra vou a Alvalade.
Inês. Aqui também não há sítios para fazer compras, não é?
moradora. Aqui faz falta uma florista, uma papelaria, faz falta esse tipo de comércio. Não há nada! Eu para comprar uma caneta tenho que ir ali ao Centro Comercial dos Olivais comprar uma Bic, que aqui não há nada!
moradora. Na Zona I agora é onde estão os bancos. Há comércio... ali há tudo! Na Zona I.
Inês. Mas para ir às compras do dia-a-dia fica no Condado, não vai à Zona I…?
moradora. Vou à Zona I. A única coisa que eu gosto são estas mercearias que há aqui, para um desenrascanço qualquer. Só há duas. Três. É o “Laranjito”, é “Os Irmãos” e a outra lá em baixo. Em termos de talho e peixaria também temos, mas precisávamos de outra peixaria, porque concorrência a esse nível é a melhor coisa que pode haver.
morador. Na Zona I não havia praça. Aqui houve.
moradora. Sr. António, diga-me só uma coisa: acha graça àquela praça? Não presta para nada!
morador. Tem peixaria! Há lá um desportivo!
moradora. Acha graça? Aquilo eram umas casas, está a ver? A praça que ali está, antes eram umas casas. Debaixo de uma ponte, puseram uma coisinha aqui, outra coisinha ali... aquilo para mim não é praça. Para mim a praça é tipo Arroios, Ribeira, Alvalade. Isso sim, é uma praça. Agora uma coisinha aqui, outra ali, uma meia dúzia de coisinhas... Não.
moradora. Adoro a praça de Alvalade!
Inês. Pois, aqui diz mercado, mas não é bem um mercado…
moradora. Acha que aquilo é uma praça? Para mim não é nada! Fui lá duas vezes, já vê.... Eu sei o que é que lá há!
Manuel. É o maior bairro da freguesia [Amendoeiras/Zona I]. Moram aqui 10 mil pessoas. E é o que tem mais centralidade. Marvila tem dois, três bancos, só. Sabe onde é que são os 3 bancos?
Inês. Imagino.
Manuel. São na Actriz Palmira Bastos.
Inês. Ah sim?
Manuel. É porque eu moro lá. Digo a brincar, mas pode ser a sério: uma pessoa pode viver sem sair da Rua Actriz Palmira Bastos. Tem tudo! Tem farmácia, loja dos animais, loja dos chineses, ourivesaria, supermercado, sapataria…
Hermínia. Churrascaria…
Manuel. Jardim de infância…
João. E vocês têm as escolas todas, não é? Têm aqui duas…
Hermínia. Tem aqui a Dom Dinis, a Manuel Teixeira Gomes, antes havia a CERCI que agora por acaso já não está aqui... Com um bocadinho de vaidade, digo que nós moramos na Baixa.
moradora. Vim em 74. No 25 de abril de 74. Mas já morava cá desde 64 porque desde os meus 3 meses que fui criada na antiga junta de freguesia de Marvila. Portanto, conhecia os bairros das barracas todas aqui à volta.
Fátima. E lembra-se da Quinta do Narigão?
moradora. Não, porque era miúda. Conhecia os daqui. O Bairro Chinês, o Bacalhau Assado, a Quinta dos Cravos, a Quinta dos Machados, tudo isso conhecia. Agora para ali já não que nós éramos pequenos. Já moro aqui há 55 anos.
Manuel. Está tudo diferente. Vivem no prédio há 40 e tal anos, não é?
Inês. Lembram-se de isto ser assim com os campos à volta, sem mais prédios?
moradora. O primeiro bairro a ser construído foi aqui o das Amendoeiras.
moradora. Lá em baixo, de quem vai daqui do lado direito [Rua Luiz Pacheco], não havia nenhum prédio quando viemos para aqui morar. Só havia os prédios que ainda lá estão, no lado esquerdo, são das Forças Armadas. No lado direito havia uma espécie de bancadas em madeira onde faziam a feira. Havia umas tábuas à frente das outras que faziam umas bancadas e faziam ali a praça.
Fátima. Em que ano é que vieram morar para aqui?
moradora. Nós viemos em 76. Até à José Espírito Santo não havia nenhum prédio. Não se lembra?
moradora. Se me lembro?! Lembro-me das quintas...
moradora. Não havia ali nenhum prédio.
Fátima. E tem fotografias dessa época?
moradora. Eu não tenho. Não havia dinheiro. As pessoas da aldeia e do campo sim, mas nós não. Nem tínhamos tempo.
Fátima. A sua família veio do Norte?
moradora. Veio, de São Pedro. Eu vim para cá com 15 dias. Os meus pais estavam cá, voltaram a ir para lá... os filhos deles nasceram todos lá. Nós também vivemos num bairro de lata. No antigo Bairro Chinês... Onde era a antiga junta de freguesia de Marvila. Eu fui criada mesmo dentro da própria junta de freguesia. E depois em 74 é que viemos para aqui [Amendoeiras].
Fátima. Esta senhora é a viúva do Tomás de Alcaide que veio inaugurar a rua.
moradora. É a viúva da minha rua.
moradora. A viúva da nossa rua!
Maria do Mar. Isto é Alvalade?
Fátima. É a tal Quinta do Narigão.
Manuel. A Quinta do Narigão pertence a Marvila. Do lado de cá. Existe sempre essa dúvida. Mas as casas boas são Alvalade, as barracas eram de Marvila.
Pedro. Pois, mas agora está no lado de lá. É Alvalade. É assim um terreno com um monte completamente vazio, onde estava o Parque Aventura…
Hermínia. Fui trabalhar para uma fábrica de confeção de roupas de criança na Estados Unidos da América. Trabalhei lá um ano e ao fim de um ano candidatei-me e fui trabalhar para o Hospital de Santa Maria.
Inês. E em 70 onde é que vivia? Já era aqui?
Hermínia. Em 70 a minha irmã vivia numas casas que existiam ali no Relógio, que eram da Câmara.
marido da Hermínia. No Bairro do Relógio.
Hermínia. No Bairro do Relógio. Cambodja, acho que era assim. Em 71 fui viver para a Encarnação e ainda existem lá as casas. Na Quinta do Morgado, junto ao Ralis.
Hermínia. Em 71 fui de férias para ficar, porque a minha mãe todos os dias... todos os dias não, eram as cartas, vinham a fumegar! Porque vim para passar uns dias de férias a Lisboa e fiquei cá um ano. E quando lá cheguei tinha uma irmã mais nova e fui prevenida que teria de ficar. Cheguei lá e diz assim a minha irmã mais velha: “Bem, aqui tem a pequena! Mas ela tem uma proposta de emprego. Se a deixarem, vai. Se não...” “Oh, quem se governou um ano sem ela... Pode voltar!”. Vim, fui trabalhar para Santa Maria. Estudei à noite e fiquei lá 40 anos.
João. E a senhora quando trabalhava no Hospital de Santa Maria, como é que ia daqui para lá? De autocarro, de elétrico?
Hermínia. De autocarro. Não havia o 755. Havia um autocarro até Alvalade e depois de Alvalade para lá apanhava outro.
[conversa continua no dia 23, no comboio entre o apeadeiro de Marvila e o Areeiro]
Fragmentos de conversas com moradores dos bairros dos Alfinetes, Amendoeiras, Condado e Flamenga, que tiveram lugar na Casa dos Direitos Sociais – Espaço Flamenga, na Associação de Moradores do Bairro das Amendoeiras (AMBA) e na Associação de Moradores do Bairro do Condado em fevereiro de 2020